Entrevista: Russo Passapusso e Antonio Carlos & Jocafi viajam pelas várias Bahias contidas em “Alto da Maravilha” numa conversa que é pura poesia, puro amor

entrevista por Nelson Oliveira

Mais de 15 anos atrás, durante um dia de expediente no extinto sebo Berinjela, localizado no final de linha da Praça da Sé, coração de Salvador, Russo Passapusso foi impactado por algo que desconhecia, até então. Meio despretensiosamente, colocou para tocar o LP “Ossos do Ofício”, produzido em 1975 pela dupla Antonio Carlos e Jocafi. Os sambas do disco reviraram a cabeça do MC do Ministério Público Sistema de Som, coletivo de dancehall que recém-começara as suas atividades, e deram início a uma relação de idolatria que impulsionou a caminhada que culminaria no álbum “Alto da Maravilha”, lançado pelos três artistas baianos no final de 2022, com produção caprichada de Curumin, Zé Nigro e Lucas Martins.

Russo tentou estabelecer um contato com os veteranos da música brasileira por anos, mas só foi conseguir encontrá-los depois de já ter se estabelecido como vocalista do BaianaSystem e até mesmo após ter gravado o disco solo “Paraíso da Miragem” (2014), recheado de influências estilísticas da produção de Antonio Carlos e Jocafi. Num belo dia de 2016, sua esposa, a apresentadora Pamela Lucciola, entrevistou a dupla num programa de televisão e o MC bateu ponto nos bastidores, atacando de fã.

No backstage da emissora se formou uma conexão que resultou, primeiramente, em composições para o próprio BaianaSystem: duas faixas (“Água” e “Salve”) foram incluídas no disco “O Futuro Não Demora” (2019), ganhador do Grammy Latino na categoria melhor álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa. O futuro, de fato, não tardou: naquele mesmo ano, Russo Passapusso e Antonio Carlos e Jocafi começaram a produzir, com apoio do Natura Musical, o “Alto da Maravilha”, que seria escolhido como o melhor de 2022 pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes e que também entraria na lista dos melhores do ano do Scream & Yell.

Cerca de quatro meses depois do show de lançamento do álbum, realizado no Festival Radioca, em Salvador, Russo Passapusso e Antonio Carlos e Jocafi fizeram duas apresentações em São Paulo e finalmente puseram o “Alto da Maravilha” para viajar. Ou melhor: levaram as andanças das várias Bahias, tão marcantes no disco, para percorrerem o país. Para a “dupla de três”, não há qualquer dúvida de que as músicas levam os ouvintes a um passeio por todos os cantos do estado.

Caminhos, viagens e potentes elucubrações sobre a Bahia, que levaram até a uma comparação entre as ruas de Salvador e Game of Thrones, adubaram a conversa que Russo Passapusso e Antonio Carlos e Jocafi tiveram com o Scream & Yell, através de uma videoconferência que poderia ser descrita como um tratado anticartesiano. Confira, abaixo, o papo repleto de falas cantaroladas e de explicações gestuais, tão caras à tradição de oralidade baiana.

Eu tive o prazer de assistir à apresentação de lançamento do “Alto da Maravilha” no Radioca, aqui em Salvador (e escrever sobre), em novembro de 2022, e também vi a gravação do espetáculo no Sesc Pinheiros, que está disponível no YouTube (cortesia Alexandre Matias / Trabalho Sujo). Entendendo que eram ocasiões diferentes, um festival e um show só de vocês, notei algumas diferenças no encadeamento do repertório entre as duas ocasiões. O que vocês repensaram nesses quase quatro meses de intervalo entre os shows?
Russo Passapusso: Vou tomar a ousadia de dar essa resposta inicialmente. Era algo sobre o que eu estava fritando, pensando muito nessas duas relações. E em como a poesia, a melodia, a música brasileira, como essa característica que a gente ama, de timbragens setentistas, de comunicação entre o vintage e os eletrônicos, em como isso iria soar em palcos de festival. Pra mim é mais difícil em palcos de festival, nesse caso, por causa da influência de sons externos, dessa relação do “timing” de público de festival, que é um pouco diferente do “timing” do público de teatro: algumas palavras não pousam tão bem num festival quanto num teatro. Às vezes você tem que dar um sopro a mais pra que elas cheguem nas pessoas e no processo de comportamento que as pessoas têm em um festival.

No Radioca foi diferente, porque ele já tinha um processo muito enraizado, similar ao que a gente levantou dentro do sítio, no tempo em que a gente ficou no sítio, ensaiando. Então ele já veio formatado através de uma convivência musical de reconhecimento das músicas. O show de Salvador era como se tivesse sido feito pra gente, como se a gente ainda estivesse no sítio, na sala, conversando e recebendo as mensagens das nossas próprias músicas. Tanto pra gente, que estava ali cantando todas as vozes, todos os coros, quanto para os músicos que estavam executando as músicas também. Então foi um show bem baiano, bem Salvador, cheio de memórias. A gente terminou com “Glorioso Santo Antônio”, numa espécie de cortejo. Tem o cortejo de entrada de “Aperta o Pé”, em que a gente entra falando sobre o corpo, sobre essa entrada do caminho, e saímos do palco com esse cortejo de saída, evocando as divindades.

Quando viemos para São Paulo, num teatro, a gente começou a entender esse processo, que eu acho o mais bonito do trabalho, que é essa relação da poesia e das palavras com o espaço. Aquela mesa que a gente coloca no centro da cena, que remete a uma mesinha de sala ou de bar, de encontro mesmo, ela se assenta no teatro de uma forma diferente, até pela altura do palco, que é mais baixo do que a plateia. Só esse posicionamento já muda totalmente o comportamento, em termos de iluminação, marcações e formatações. É um barato que eu gosto muito de ficar pensando a cada show, então a gente trabalhou o repertório do teatro para encaixar mais ainda o processo de histórias de vida, que vinha guiando o próprio repertório. Tivemos até a participação do [ator] Luiz Carlos Bahia, que abriu o show recitando uma passagem, num prólogo, como Reimundo, esse personagem maravilhoso que ele criou. Ele também estava na apresentação de Salvador, mas não se abriu essa perspectiva de ele colocar a poesia dele. Aí você vê como o teatro abre nuances, te dá a chance de experimentar. No segundo show no Sesc Pinheiros, ele até apareceu em outro momento do show e assumiu a terceira cadeira, em que eu passei boa parte do tempo sentado, ratificando essa ideia de encontro, de botequim, de espaço em que a gente pode receber alguém e fazer música.

Acredito que a gente vai continuar aproveitando esse potencial de receber pessoas no show e que ele vai se formatar assim, com esse circular de colaborações de gente que seja muito interessante e consiga chegar ali com a gente, sentar, conversar e fazer música, abraçada ao repertório de Antonio Carlos e Jocafi, que é o magma e o sopro do trabalho, a esse disco novo que a gente fez – que é o elo de tudo – e à produção de “Paraíso da Miragem”, que é o meu álbum anterior e me trouxe até aqui.

Jocafi, Luiz Carlos Bahia e Antonio Carlos no show de São Paulo / Foto de Marcelo Costa

Essas modificações estão inseridas num contexto de mais tempo de ensaio, já que os shows do Radioca e do Sesc Pinheiros aconteceram num espaço de quase quatro meses entre eles?
Antonio Carlos: Eu acho fantástico que a nossa relação com Russo é muito forte. E quando você tem uma relação forte com uma pessoa, ela se estende pra todo canto. É como se Russo já fosse Antonio Carlos e Jocafi mesmo, entendeu? É uma coisa que já tinha sido juntada pelo universo, eu diria. Então eu acho que cada vez mais a gente vai se unir nas músicas. A gente pensa igual, nós somos da mesma terra, e tudo isso facilita um pouco as coisas. Ele ser baiano, ter as mesmas origens nossas é perfeito. Eu amo esse trio, acho tudo muito bacana.

Russo Passapusso: Vou acrescentar algo! Já existia um estudo muito apurado pela banda e por mim [sobre Antonio Carlos e Jocafi]. A primeira vez que eu fui pra São Paulo, eu já fui falando de Antônio Carlos e Jocafi pra Curumin. Isso tem bem mais de 10 anos. Foi quando eu viajei para lá para fazer uma participação num show do disco “Calavera”, do Guizado, nem era pra fazer o “Paraíso da Miragem”. Lá eu já estava falando sobre essas coisas. Então, assim, se você parar pra perceber, já tem uns 15 anos que eu fico repetindo o nome de Antonio Carlos e Jocafi pra todos os músicos, pra falar da grandiosidade da composição. Isso, pra mim, transborda o sentido de fã, que eu sou, o sentido de seguidor, que eu sou, de aluno, que eu sou, de mensageiro, que eu sou, e entra no sentido mesmo de estudo, né? Então a gente vem estudando isso e não é fácil você entender a amálgama de respiração e sotaque da linha de composição, de entendimento rítmico, que Antonio Carlos e Jocafi têm tem em relação às marcações, ao ijexá, à organicidade da música e aos instrumentos que, dentro do mesmo BPM, vão estar com o pensamento mais pra frente e os instrumentos que vão estar com o pensamento mais atrasado. Isso tudo faz parte desse sotaque: a música vem acompanhada de frases e adjetivos, como “um ijexá com mais dengo”, “um ijexá com mais atividade, atitude”, “vamos fazer esse samba mais relaxado” ou “não, não a gente está muito alemão, batido da cabeça”.

Tendo em relação ao que você falou, sobre a banda ter ensaiado mais, eu diria que essas questões de apuração técnica, sendo mais objetivo, são uma questão de percepção e estudo que a banda vem tendo. Porque uma coisa é você executar com seu corpo e outra é você executar com sua mente. Acho que a gente está chegando agora em um nível de um entendimento de executar com a mente: “eu vou pensar para trás pra executar essa música” ou “eu vou para frente nessa aqui” ou ainda “aqui eu tenho que estar desleixado, eu não posso estar concentrado, aqui eu tenho até que esquecer amolecer o corpo”, “aqui não, aqui eu tenho que estar cheio de ar pra fazer o ‘atchi’, ‘atchá’”. Cada momento é diferente e vai se colocando dentro desse sotaque de nuances e eu acho que essa é a grandiosidade da música de Antônio Carlos e Jocafi e é uma grandiosidade que acompanha e acompanhou os músicos dessa safra maravilhosa brasileira, como João Gilberto, Toninho Horta, Cátia de França, Rosinha de Valença. Todas essas pessoas eram acompanhadas de detalhes de sotaque pra poder ter uma execução técnica nos shows.

Eu estou falando muito sobre show porque é apenas o segundo show que a gente está fazendo. É muito bom você ter visto o primeiro em Salvador. O outro que você viu na internet, numa visão de terceiro plano do que estava acontecendo ali, eu creio que você, com certeza, foi muito racional na sua visualização – já que na internet, por mais que você sinta, você está agindo racionalmente, por conta dos algoritmos e dessa relação toda. O que a gente conseguiu perceber de mais importante da diferença dos dois públicos era que um tinha um referencial. “Ah, isso já estava aqui dentro de casa e eu estou lembrando da história”: foi assim na Bahia. E em São Paulo, não: em São Paulo soou realmente, por mais que a gente estivesse tocando “Você Abusou”, uma coisa nova.

Jocafi, Russo Passapusso e Antonio Carlos no show em São Paulo / Foto de Marcelo Costa

O “Alto da Maravilha” conta com algumas músicas que Antonio Carlos e Jocafi já haviam composto há bastante tempo, apesar de ainda não terem gravado, e outras que foram concebidas totalmente depois que a parceria entre vocês três começou. Como se sucederam os processos de trabalhar novamente nessas composições mais antigas, criar outras e até mesmo escolher quais integrariam o álbum? Houve uma tentativa de equilibrar faixas mais suingadas e funkeadas, que fazem parte do que Russo chama de Lado Pé, e outras mais melódicas e contemplativas, do Lado Mão?
Antonio Carlos: Olha, esse disco foi começado quatro anos atrás. A pandemia apareceu no meio e, durante a pandemia, nós fizemos muitas músicas juntos. Então a gente talvez tivesse uma ideia começando, mas com o advento da pandemia a gente mudou a ideia e foi fazendo, fazendo, fazendo [coisas novas], entendeu? E hoje nós temos metade de um próximo disco pronto, que tem o nome provisório de “Dupla de Três”. E compomos outras músicas que nós pretendemos dar pra outros artistas. Está tudo no ar ainda.

Por exemplo, tem a primeira música que nós três fizemos juntos, que se chama “Pandora”, que já tem quatro anos. Essa música ia entrar nesse disco, mas não entrou. Nós a finalizamos agora, no dia do show [em São Paulo]. Pra gente está sendo muito bacana esse trabalho, que está acontecendo de forma inédita. Por exemplo, eu não sei fazer música com Jocafi se ele estiver na casa dele e eu na minha. Com Russo, eu sei. Só não sei se eu consigo fazer com Jocafi e Russo juntos, porque nós nunca fizemos. Juntos, nós três compomos sempre via internet.

Jocafi: Eu acho que essas músicas que estão inseridas nesse álbum se relacionam com algumas que a gente fez lá no início, como “Catendê” ou “Quem Vem Lá”. Essas músicas foram tidas como afastadas do âmbito radiofônico. As rádios não tocavam porque eles [os seus diretores] diziam que essas músicas eram uma loucura, que ainda não tinha público pra esse tipo de música. Então eles preferiram tocar “Você Abusou”, “Mudei de Ideia”, os nossos sambas, enfim. Mas, veja bem como é interessante: essas músicas vieram a aparecer quase 40 anos, 30 anos depois, abraçadas por essa juventude. E a gente se sente feliz, porque os jovens cantam, sentem, dançam. Eu acho que essa música era feita pra agora mesmo. A gente não pode nem acreditar que aquele público fosse dançar uma música meio funkeada, entende como é que é? Um samba funkeado, uma coisa mais moderna. E exatamente, para aquele tempo, talvez tudo isso fosse moderno demais.

Russo Passapusso: Acho maravilhoso isso que Antonio falou e o complemento de Jocafi, então, ave Maria, incrível. Puxando o link de Tonho sobre a pandemia, tem o seguinte: o disco começa com “Aperta o Pé”, né? Então o disco começa saindo da pandemia. Existe uma coisa nas músicas quando elas são feitas a partir de histórias de vida, que é o jeito como Antonio Carlos e Jocafi compõem.

Depois do primeiro sentimento que eu coloquei dentro do nosso grupo do WhatsApp, o “Dupla de Três”, Antonio Carlos e Jocafi me perguntaram: O que que está acontecendo aí? Como foi hoje? Aí eu falei “opa, a gente estava fazendo a música e me perguntaram como foi hoje aqui na minha vida? [risos]. Quer dizer, eles têm que ter relação direta com você o tempo todo. O que a gente está fazendo aqui [nas composições] é registro de vida. A gente está olhando as histórias de outras pessoas e, como Jocafi fala, nós somos “prestadores de atenção”. O vento está batendo na janela, na porta… “ah, isso aqui é importante”. Isso foi amplificado pela pandemia. O valor da vida foi amplificado imensamente pela pandemia. E aí, de repente, eu estou no disco, no show cantando “tava esperando a poeira baixar”. Eu falei, “oxe!”: a pandemia passou, a poeira baixou. Eu chego perto da mesa e falo: “chega, vem comigo pela estrada, Jojô”: Jocafi! Aí na segunda música: “quem vem lá? Sou eu, sou eu”. Quem vem lá? Antonio – e vem ele chegando.

Ou seja, é o sentido premonitório na música, depois de uma catástrofe dessas, como foi a pandemia. Ela preza por ensinar a gente como caminhar. Esse disco trata de caminho. E tratando-se de caminho, ele fala sobre a caminhada e a trajetória de dois grandes compositores – ou “dois em um” grandes compositores – que fizeram e que contaram essa história, que são carregados de imagens, de músicas, de livros, de filmes, de coisas. Eles não param de compor histórias e até conversas são composições.

Era natural que esse primeiro disco cruzasse histórias de outros tempos. Porque a gente está falando de atemporalidade e fazer isso tudo, vindo de outros tempos, ser atual era o grande barato. Poder tocar “Catendê” e ver um público que antes queria deixar o romantismo de lado e consumir coisas mais objetivas, nessa imediaticidade, passar a entender que o romantismo não é um atraso, não é uma lentidão, não é nada disso: é o coração cheio. Então a gente está começando a perceber os cantos de “Catendê”, de “Vapor de Cachoeira”, os tempos mais acelerados e mais lentos, como tem no disco essa separação. E o próprio disco, como ímã, foi colocando as músicas mais agitadas e que tratavam de caminho no começo, até um ponto de mutação no meio: “Mirê Mirê”. E esse ponto de mutação desemboca em outra história, como se fosse a correnteza do mar. Mais acelerada no começo, porque era Salvador, e quando a gente chega ali em “Mirê Mirê, os olhos se abrem para esses rios e afluentes da Bahia, que Jocafi tanto conhece – e sabe o nome de todos eles.

Jocafi: Exatamente. Quando a gente chega nas águas de Oxum, a gente vê que na verdade é um remanso, é um descanso. Quando você traz pra aquela plateia os acordes de “Vapor de Cachoeira”, aquilo relaxa. A gente sente que o público relaxa naquele momento e que começa a cantar aquilo como se fosse um poema. Um poema das coisas, um poema do rio, um poema do próprio vapor – que já é um poema por si, com aquela roda girando e levando as pessoas pra suas vidas, pros seus caminhos. É uma coisa interessantíssima. É só prestar atenção. Você presta atenção e você vê o povo descansar, o povo que está na tua frente descansar. Aí você diz: “meu Deus…” [emocionado]. E ele canta aquilo com toda a suavidade, entende? Canta aquilo como se pertencesse àquele momento, aquela coisa do vapor de Cachoeira, que eu não conheci, que existia muito antes de eu ter nascido, mas que eu aprendi sobre através das cirandas e dos cânticos que a mim foram passados por pessoas que amei muito.

No fim das contas, o disco percorre os caminhos das várias Bahias. E, principalmente, convida o ouvinte a uma viagem espaço-temporal, porque até o velho vapor de Cachoeira, que virou uma espécie de figura mitológica do Recôncavo, foi cantado por vocês. Essa ideia de transporte e trajetória faz até pensar na estrada de ferro que ligava Feira de Santana, onde Russo nasceu, a Senhor do Bonfim, cidade em que o próprio Russo passou a infância e onde estão enraizadas parte das origens de Jocafi. Uma ferrovia que, vale destacar, cruza o bairro do Alto da Maravilha. Que tal aprofundar um pouco desse referencial para o público?
Jocafi: Lá em Senhor do Bonfim, essa estrada de ferro que passava por esse lugar chamado Alto da Maravilha se bifurcava: um lado ia pra Jacobina e o outro ia direto pra Juazeiro. Russo sabe disso, faz parte da raiz dele. Meu lado era o outro: era o lado das Imburanas, das canoas. É o lado oposto, onde fica um lago de água salobra, de uma nascente que existe até hoje nessa cidade gostosíssima. É o remanso, como eu falo. É muito gostoso de se inteirar.

Russo Passapusso: Você falou aí do trem e eu lembrei minha infância toda, até me emocionei. É muito bom entender essa coisa geográfica muito forte que Jocafi tem e essas visões metafóricas e poéticas muito fortes que Antonio tem. Há duas frases que eu falo que eu acho importantíssimas pra entender o disco: o caminho que faz a gente e o caminho que nos faz. Lado Pé e Lado Mão.

Quando eu estava ouvindo e interpretando todo o disco de primeira, pra entender do que ele se tratava, começando com “Aperta o Pé”, “Veneno” chegando naquele jardim, falando dos agrotóxicos, eu vi os transportes: a gente falando do pé que sai correndo pra pegar o vapor de Cachoeira. E aí você pega o vapor de Cachoeira e chega na porta você ouve “Mirê, Mirê” [cantarola]. “Ai, cheguei. Consegui chegar, agora eu tenho que esperar, que ele vai me levar a tal lugar”. E quando você desce, você vê “Ponta Pólen” de novo, você vê as coisas acontecendo, né? Você vê o “Olhar Pidão”, você encontra alguém lá e depois você vai continuar vivendo e termina lá em Catendê. Eu vi essa história muito clara, muito presente em “Alabá”, quando chegam as crianças que vêm ali correndo atrás. Criança no interior é assim: qualquer coisa que chega tem criança correndo atrás. Eu era uma dessas. Chegou um carro? Corre atrás do carro. Chegou um boi? Corre atrás do boi. Esses são os alabás, né? São as crianças.

Aí você tem “Pitanga”. É aquela coisa: quando você é criança, está na roça e senta debaixo de uma árvore com seu pai. Aí ele foi lá ver os bois e você pega um pedaço, daí o pedaço de pau já virou uma pessoa; pega uma pedra, que já vira um carro e você começa a brincar e a se sentir imerso naquela natureza. Vem abelha, aí vem não sei o quê, aí vem o boi, aí caiu a jaca do pé. Então esse processo todo do Alto da Maravilha [a localidade] era formatado muito fortemente na minha cabeça, mas ele era subjetivo – porque eu não tinha voltado em Bonfim pra fazer o disco. Eu tive a oportunidade de voltar lá com o disco pronto. E aí eu liguei pra Toninho e pra Jô lá da feira em que eu vendia banana. Naquela mesma feira eu olhava pras pessoas e estava todo mundo assim: com bochecha grande, barba e chapeuzinho [aponta para si mesmo]. Aí eu falei: “Toninho, Jô, eu entendi porque eu sou assim! Os coroas todos com chapéu de coco, bochecha grande e preta, de barba – e carequinha”. Eles dois ficaram brincando comigo e eu fiquei filmando a feira, que fica na entrada da subida da serra do Alto da Maravilha. Eu andava todos os dias com meu pai ali, pra buscar água, que a gente trazia lá de cima. Ele me botava no jeguinho, enchia os caçuás, dava um tapa na bunda do bicho e eu descia só com o jegue.

Essa coisa da “Bahia Molhada” e da “Bahia Seca” do sertão perpassa também essa ideia de Lado Pé e Lado Mão – me veio essa luz quando eu ouvi. Aí eu pensei: todas as mais do coração vão ficar mais pra depois e as mais “de corpo” vão vir antes. O disco estava chamando isso. Eu sempre gostei muito de desenhar os discos a partir dessas interpretações, acho muito interessante. Tem uma parte em que você faz as músicas e você escreve pra elas, e outra parte em que ela fala e escreve pra você. Essa segunda parte, pra mim, é o grande barato da situação. Então depois que estava tudo pronto, tudo já separado, eu tinha que prestar contas para todos os outros – Curumin e todo mundo da banda, mais Antonio Carlos e Jocafi. Contar aquela história, quase como se eu tivesse que ir num terreiro, numa igreja, num templo budista, ouvir tudo aquilo e falar: “ó, eu fui iluminado, eu entendi, que tem o lado do caminho, primeiro que é o Lado Pé e o Lado Mão depois” [entoa em canto gregoriano]. Sabe? Eu tinha que mostrar que “Catendê” entrava no final como uma forma de agradecer à vida. Eu tinha que ter esse mantra pra poder me entender dentro desse processo e poder me comunicar com todos eles. Porque eu realmente acredito que eu tô vivendo o que eu queria ter vivido se eu fosse da década de 70. [risos]

O aspecto geográfico de Senhor do Bonfim, que é sertão, e esse êxodo que leva a Salvador, que tem essa coisa da “Bahia Molhada”, da Ilha de Itaparica, isso foi retratado. E eu não sabia que o sertão ia ser mais “aaaaaah” [mexe as mãos, em sinal de compasso agitado] e que, de repente, quando chegássemos aos mares e na situação ali que é diaspórica, a gente ia de “ê, Mirê, Mirê”, que ia de “me dê um beijo, um cheiro, um aperto de mão”, que ia ter “se não for truque, isso é mágica” [cantarola, suavemente, trechos de canções do álbum]. O disco fala de transporte no lado A, que é Pé. Essa relação do vapor né, do movimento: dá pra sentir a imagem dos colibris voando, dos bois transitando, né?

E depois, no final, a gente chega numa parte que eu só entendi nesse último show. Ali eu peguei essa fita aí que eu não tinha percebido e nem tinha comentado em outras entrevistas: tem o olho. É o olho. Nossa, cara, foi louco como o olho apareceu. Pé, mão e o olho. O olho, cara. O olho é “Mirê Mirê”, o olho é o prólogo de Luiz Carlos Bahia, um dramaturgo, poeta e palhaço que hoje é um personagem muito importante nesse amálgama que é [o trabalho com] Antonio Carlos e Jocafi. “Tudo está no fundo do olho”. Ele está declamando essa poesia agora, nas aberturas dos shows. É incrível: tudo está no fundo do olho. O olho de “Mirê Mirê”, o olho dessa história: Deus está no olho, a alegria, a tristeza, o inferno… tudo está no olho. A gente começou a elucubrar muitas dessas relações poéticas, estamos profundos depois desse show de São Paulo. A gente está cada vez mais recebendo mensagens da poesia e isso está sendo maravilhoso pra gente. Essa foi uma percepção atual de entendimento do olho, de quando o disco volta pra gente e ele volta mostrando pra gente que está de olho na gente, que a gente está de olho no próximo disco, que a gente está de olho em que tudo que tá acontecendo, né? Essas outras pessoas que circundam a gente, como Luiz Carlos Bahia e outras pessoas que acredito que ainda vão chegar nesse angu… todas elas são olhos. No fim das contas, tem um corpo vivo sendo colocado, unificado, com o pé, a mão – e o olho como o agente de entendimento.

Jocafi e Antonio Carlos no show em São Paulo / Foto: Marcelo Costa

Quanto o produto final do álbum guarda daquele Russo Passapusso que descobriu Antonio Carlos e Jocafi enquanto trabalhava num sebo no Pelourinho?
Russo Passapusso: Ele guarda tudo. Só que, agora, além de guardar, ele tá jogando junto [risos]. A gente está muito seguro, a gente deixou de ser só um de relações de transmissão musical e a gente está tendo agora um processo muito forte de correlação, de segurança, de entendimento do caminho. A gente já sabe as estradas, a gente já sabe as possibilidades. Você fala “Russo”, eu falo “a gente”, porque eu já absorvi essa filosofia de Antonio Carlos e Jocafi de ser vários. De ser corpo de outras cabeças e cabeça de outros corpos. Coração de outro corpo também, né? Antonio é Antonio Carlos e Jocafi, Jocafi é Antonio Carlos e Jocafi, eu sou Antonio Carlos e Jocafi. Então a gente consegue pensar com essa multiplicidade. Então o que mudou daquele Russo é a saída do “singular coletivo” pro “coletivo singular”, a saída do “eu para todos” pro “todos para eu”, sabe? Isso comunica de uma forma mais verdadeira e mais grandiosa.

Essa época em que eu vendia discos no [sebo] Berinjela está cada vez mais latente. Tanto que eu estou tendo que voltar muito pra essa minha memória, essa biblioteca que eu tenho aqui [aponta pra cabeça] pra poder fazer as coisas, pra poder me comunicar e entender. Eu estou voltando muito pra esse processo. Porque a gente já descaracterizou o tempo. Músicas que são antigas já chegam no público como se fossem de hoje e a gente já percebeu que isso acontece assim, ó, num estalar de dedos. Ninguém mais precisa saber que isso é antigo, que é de antes, que é de depois, a galera já está tipo “Uh! vamos nessa”!

Quando a gente viu isso acontecer, a gente falou “opa, entendi”! A memória é eterna, a memória é atualização. Isso realmente aconteceu. Eu falava sobre isso, achando que não ia acontecer, e em São Paulo isso se transformou de uma forma muito forte. Em Salvador a gente ficou mesmo com as relações que temos com a cidade. Um conceito que Antonio sempre me coloca é que Antonio Carlos e Jocafi sempre se realimentam de um conceito de ancestralidade em todos os métodos de composição, em tudo. Tudo é permeado por uma ancestralidade muito forte, muito enraizada. A gente tem a diáspora cada vez mais presente. Quando a gente fala de Salvador e da Bahia a gente está falando de uma Salvador, de uma Bahia em que o mundo chegou. Da diáspora dos navios e dessa terceira diáspora, que é a diáspora possibilitada pelos fluxos de comunicação da internet. Agora a gente pode estabelecer uma relação de autoconhecimento a partir dos griôs e tudo o mais, percebendo Salvador como o mundo, a Bahia como o mundo; essas placas tectônicas flutuantes desse planeta como o mundo. Agora a gente está menos está mais coletivista, no sentido de hiperconexão.

Antes de a gente lançar o disco, Antonio Carlos e Jocafi viajaram para os Estados Unidos. Fizeram show lá com os caras do [movimento] Jazz Is Dead, com os caras do rap que eu ouvi a vida inteira – A Tribe Called Quest, De La Soul, The Pharcyde, coisas que eu ouvia na Boca do Rio pra poder fazer o BaianSystem e que com certeza Antonio Carlos e Jocafi nunca tinham ouvido. Enfim, esse jazz rap que eu gosto muito. Coisas que com certeza vão começar a bombar, porque já estou vendo a descaracterização de um conceito só da trap music, dos ritmos modernos e tal. Então eu consigo dialogar modernamente com as coisas mais modernas do mundo com esse projeto com Antonio Carlos e Jocafi. Isso descaracteriza aqueles papos do tipo “ah, com Antonio Carlos e Jocafi a gente está trabalhando um conceito vintage e com o BaianaSystem a gente coloca as coisas mais novas”. Não tem mais isso, isso já foi! Já foi a partir do momento que você vê um gringo fazendo funk e fazendo rimas dentro de um conceito, como o Chali 2na, que era do Jurassic 5, fazendo sample de “Kabaluerê”. Ou Marcelo D2, que também bombou com um sample de “Kabaluerê”, anos atrás, em “Qual É?”. Então isso tá muito latente.

O que eu guardo em mim dessa história toda é que hoje isso deixou de ter o sentido de lembrança, de memória, e passou a ser atual e até meio futurístico, apesar de eu nem gostar muito de usar essa palavra. Estou vendo que tanto o que vem pela frente quanto o que está ao redor, em outros países, está altamente conectado com essa “Bahia-mundo”, que é a que eu, Antonio Carlos e Jocafi temos dentro da gente.

Isso se relaciona até com o que Jocafi falou anteriormente: talvez a música que eles compunham fosse pra hoje e não pros anos 60 e 70. Já vi bastante gente nova viajando e fritando com as versões originais de “Glorioso Santo Antônio”e “Kabaluerê” em discotecagens dos coletivos Voodoohop e Nozmoskada, por exemplo. Como foi para vocês dois, Antonio Carlos e Jocafi, trabalhar com pessoas de uma outra geração? Deu para manter os mecanismos de produção de vocês?
Jocafi: Tá sendo um aprendizado. É como eu falo pra Russo às vezes: “Russo, ouça muito”. A gente tem que ouvir as outras culturas, saber de uma maneira profunda sobre o que está acontecendo. Prestar atenção é muito importante. Eu e Antonio Carlos fazíamos muito isso quando jogávamos futebol na rua – hoje, as ruas foram ocupadas pelo automóvel, que é o dono da rua, e aí não tem mais jeito. Tô saindo um pouquinho do assunto da sua pergunta porque, no fundo, tudo vem da rua, porque ela é um caminho.

Antigamente, nas ruas você tinha muito frequentemente um alto-falante, que tocava as músicas de todo mundo. E aí você podia ouvir a Ave Maria de [Charles] Gounod, ouvir Stevie Wonder, James Brown, entende? E você podia se ligar no trabalho de James Brown, que foi a primeira referência de Michael Jackson, que é o pai do pop no mundo – e transformou a música com sua dança, meio circense, e seu talento incrível, de saber como a guitarra funciona, como o piano vai entrar, saber de tudo sem nunca ter tido uma aula. Ele prestou muita atenção, ele teve a disciplina do pai dele.

Então, a gente prestava atenção na Bahia: as ladeiras, o Mercado Modelo, aquele era o mundo da gente. O Mercado Modelo era um mundo e todas as músicas se encontravam nesse mercado, que você e a juventude não conheceram [nota: o antigo Mercado Modelo de Salvador foi totalmente destruído num incêndio, em 1969, e reinaugurado em um prédio bem menor, adjacente a sua construção original]. Você não teve a oportunidade de conhecer um dos lugares que eram o alicerce da musicalidade baiana. Era ali que chegavam os sambas duros que vinham de Santo Amaro da Purificação, de São Félix, de Cachoeira – essa mesma Cachoeira do vapor, que muitas pessoas não conhecem, essa cidade muito importante para todo o país, porque foi uma das sedes do movimento de Independência da Bahia. Tudo acontecia e terminava ali no Mercado Modelo. E lá a gente aprendeu sem querer, a gente aprendeu com o mundo.

E ainda tínhamos o aprendizado que Antonio Carlos trazia de um outro lado. Nós nos unimos nessas duas coisas: ele, pelo lado intelectual, através de Ildásio Tavares, da cultura da escrita, entende? Ele é um escritor de mão cheia. Já eu venho de uma parte inteiramente “bagaça”, daquele povão, daquele negócio do Mercado Modelo, do “vamos fazer samba de roda e toma uma cachaça aqui” – não que ele não tome a dele. Aí tome uma cachaça aqui, outra ali, uma cachaça com limão – a bebida mais horrível que você pode ter bebido na vida, mas a gente só podia pagar aquela. E quando se juntavam toda a estudantada do Colégio Central com os estudantes de Direito, de Engenharia, de Arquitetura e de Filosofia da UFBA? Quando perguntaram a Caetano Veloso: você estuda filosofia pra quê? Pra ensinar na faculdade? “Não meu filho, eu estudo filosofia pra filosofar”, ele disse. E ele estava certo. Se você não vai estudar filosofia pra filosofar, pra que que é? E hoje ele é o filósofo da gente, ele é o filósofo do povo baiano.

Olha como é esse pedaço de terra. O primeiro pedaço do Brasil que começou a ser explorado pelos portugueses ganha uma importância cultural intrínseca, de uma virulência que tomou o país inteiro. É como se Deus tivesse baixado, botado a mão e tivesse dito: “Ó, é aqui, o lugar é esse. Vamos abençoar e fazer coisas boas nesse lugar”. É como eu digo pra Russo: até santo nós produzimos na Bahia, cara. Isso é uma coisa muito séria. É uma mistura e as ideias antes nascem aí [na Bahia]. Eu tenho muito orgulho e sorte de ter nascido aí. Tanto eu quanto Antonio Carlos, que é um baiano muito mais baiano do que eu, até os últimos estertores. Amo muito essa terra e vivo longe dela porque não tive como permanecer nela, por causa do trabalho. Mas estou acreditando que, quando for realmente a hora de parar, eu vá terminar meus dias na Bahia.

Antonio Carlos: Como Jocafi falou, nós estamos longe da Bahia, mas a Bahia nunca esteve longe da nossa música. Eu diria que 70, 80% da nossa música, se você analisar, é baiana. Eu sou “baiano-brasileiro”: o lado baiano vem em primeiro lugar e tanto Jocafi quanto Russo sabem disso. A minha música vem da raiz, vem do candomblé, vem de Mãe Menininha, de Mãe Carmem, dos tambores. A minha primeira música, que Os Tincoãs gravaram, se chama “O Enterro da Ialorixá”.

Eu sempre estive ligado ao candomblé, junto com Ildásio [Tavares, poeta], Jorge Amado, Carybé… eu frequentava o Ilê Axé Opô Afonjá [nota: terreiro centenário localizado no bairro do São Gonçalo do Retiro, em Salvador]. Então eu sou a Bahia, entendeu? A Bahia está dentro da gente, dentro da nossa música. Você pode ver: a crítica carioca e a paulista falavam mal da gente porque a gente usava expressões como “presepada”, “breguete”, “tá rebocado”, “peripicado”, que são típicas da Bahia. Até hoje, mesmo nas nossas composições com Russo, a gente fala da Bahia – como em “Miçanga”. Tudo que a gente faz fala da Bahia. Saiu de Antonio Carlos e Jocafi, tem Bahia no meio.

Luiz Carlos Bahia e Russo Passapusso no show em São Paulo / Foto de Marcelo Costa

Aliás, “dupla de três” também é uma construção semântica bem popular na Bahia e é o nome provisório do novo álbum que vocês estão produzindo. Quais são os planos de vocês para esse disco?
Russo Passapusso: Rapaz, eu vou te falar uma coisa: eu achava que a geração de hoje em dia é que era workaholic, que ficava com essa coisa de trabalhar e não ter tempo pra mais nada. Mas Antonio Carlos é assim, e eu tenho certeza que o celular vai bombar depois dessa nossa conversa. Ele é que nem Luiz Carlos Bahia, que estou conhecendo melhor agora. Luiz Carlos olhou pra mim, antes do show em São Paulo e falou: “eu transpiro só de pensar”. Aí eu virei pra ele e respondi: calma! Antonio Carlos é metódico. Vai bolando métodos, vendo que métodos não deram certo, ajustando outros. Já Jocafi tá ali, prestando atenção em tudo. E às vezes até fingindo que não está prestando – do jeito que ele está ali, ó. Ele tá ali, mas ele está vendo tudo. Qualquer coisa que dê uma lambuja e vá pro lado da música, que vá pro lado da arte, ele pegou. Ele tá ali, sempre em estado de esponja e de antena.

Isso fez o sentido do “Dupla de Três” e foi dentro desse discurso que a gente colocou um termo que pousou na gente e a gente achou engraçado – e a gente tem muito humor nas coisas. Tem muito sentimento, tudo é muito sério, mas também tem muito humor. Hoje a gente percebe que esse é um campo de métodos de trabalho que tem várias pessoas ao redor, vários músicos, cada vez mais gente chegando – com outras formas de criar. Instrumentistas, cantores, poetas… e eu estou vendo muitas outras coisas se aproximarem disso.

Naturalmente, um disco chama o outro: ele olha pro outro, uma música olha pra outra. Uma coisa que eu agradeço por ter e que foi muito importante pra poder viver em composição com Antonio Carlos e Jocafi é o fato de que eu nunca fiquei preso a uma música. Eu fazia uma música, ela criava vida e já ficava parecendo que eu não tinha nem feito ela. Ela estava ali, mas eu já queria saber o que estava acontecendo aqui e agora. Porque, se eu ficasse pensando no que estava acontecendo naquela época não adiantava muito, porque a música era eu naquela época. Mas eu acordei hoje e hoje eu estou de outro jeito. E aí vem mais música. Elas são fotografias e, agora, a gente está fazendo esse álbum de fotografias abraçado por essa “dupla de três”.

E o mais bonito desses próximos trabalhos é que a gente começa a ver o público cantando as músicas que a gente fez no disco anterior. A gente está olhando pra eles e continua fazendo música. Isso está mudando tudo: a gente já conhece o forno e a lenha. Então a gente já sabe o que a gente vai botar no forno a lenha. Esses são assuntos que a gente estava conversando no backstage dos shows de São Paulo, com Jocafi já falando do próximo álbum. Isso porque a gente recebe do público um hálito, um fôlego, um sotaque. E isso vai acontecer cada vez mais, com a gente rodando o país e entendendo como a plateia de cada local vai cantar os versos – o Brasil é grande e traz pra gente essa riqueza. Agora nós estamos num processo não de compor pra mostrarmos algo novo, mas de sermos renovados a cada show pra podermos alimentar esse novo disco.

Antonio Carlos: Eu queria acrescentar uma coisa interessante sobre essa questão do retorno do público. Antigamente, nas minhas músicas com Jocafi, as pessoas cantavam os refrões mais conhecidos, como “você abusou” [cantarola]. Hoje é diferente: a gente tem música com versos em iorubá, como “Ê, Mirê-Mirê / Babaolorum, Alá / Elefimã, fimã oxum babá-ô”, ou “Kabaluerê”. E o povo canta, gente! Essa língua é muito complicada e as pessoas cantam. É muito bacana e eu fico muito feliz com isso.

Russo Passapusso: Nossa, eu vou completar, porque eu acho isso emocionante. Você sabe o que é retorno da linguagem? Você sabe o quão importante é essa materialização na nossa caixa acústica, através da repetição? O que dialoga com a nossa cabeça, com o nosso espírito? Pronunciar o iorubá traz um processo muito forte de reconexão – e eu estou falando do campo extrarreligioso, do racional, de como isso move uma cultura griô. É maravilhoso eu ver essa língua dentro de um funk e todo mundo ali: “Kabaluerê, uh” [cantarola, dançando na cadeira].

Jocafi: É exatamente como Antonio Carlos está falando aí, mas eu acredito que ele quer dizer muito mais quando toca nisso. Como é que essas pessoas podem estar cantando em iorubá? Como é que elas podem cantar em qualquer coisa? Porque isso é a memória que nós temos, essa memória ancestral que nos foi dada, graças a Deus, pela mãe África. A mãe África é tudo. Foi de lá que veio o começo da humanidade e é lá que nós vamos terminar. É só prestar atenção que você vê que tudo veio de lá: o funk, o rock, o samba, a guaracha, o mambo. Tudo isso é memória: como quando você fala em iorubá e você vê também o cubano cantando em iorubá, que é uma língua tribal. É que o som é universal. Preste atenção nos sons universais.

Os vendedores de rua, por exemplo: “Mo-co-tó”, “a-ca-ra-jé” [começa a entoar, imitando os ambulantes]. Olha o som disso aí! Ela já faz uma melodia! Olha o quanto você pode usar isso aí como melodia! E isso aí a Bahia lhe dá o tempo inteiro. A Bahia é a maior compositora brasileira do ramo musical. É a Bahia. Ela não precisa de nenhum compositor. Ela já é. Quando a pessoa presta atenção, ela saca essas coisas todas. Por exemplo, eu me lembro de quando eu estava assistindo aquele seriado Game of Thrones. Aquela baixinha guerreira, que é um personagem-chave [Arya Stark], quando se sentiu em uma situação menor, sem ter como ganhar o dinheirinho dela, ela começou a mercar. Ali eu me senti na Bahia, com aqueles frutos do mar em plena feira e, principalmente, com ela cantando uma melodia que você vê na Bahia. Você vê em qualquer lugar do mundo, cara. Isso é de uma importância pra mim, que trabalho com o “prestar atenção” para iniciar uma composição e as melodias. Ela me dá essa melodia. Olha aí a beleza: “a-ca-ra-jé!”, “mo-co-tó!” [volta a entoar], olha o poema que essa melodia traz com ela. Ela já traz a levada do ritmo e diz aonde ela quer nos levar. Ela nos mostra.

Russo é um criador de ritmos incríveis. Ele pega o ijexá e transforma numa coisa que você não acredita. Mas isso é pra quem presta atenção. Quando você presta atenção, você sabe das coisas. Sempre me perguntam por que eu assisto novela. Ficam assim: “Ah, novela? Ninguém assiste novela”. E eu assisto, porque ali se manifestam os anseios humanos, as coisas de que eu faço parte – que é o grupo humano, entende? E é daí [dos anseios] que a gente tira toda a musicalidade, todos os pensamentos pra fazer uma letra.

Pra encerrar, queria falar um pouco sobre as fusões entre Antonio Carlos e Jocafi e o BaianaSystem. “Água” e “Miçanga”, além de serem duas das preferidas do público, são fundamentais nas apresentações da banda no Carnaval de Salvador. Sem Água e Miçanga, o trio não anda, o Navio Pirata não navega. Dito isso, pergunto: um dia a gente vai ver Antonio Carlos e Jocafi no trio do Baiana?
Russo Passapusso: Vou tentar fazer um pequeno apanhado dessa nossa entrevista, levando em consideração que a gente está com muitas informações na cabeça e, muitas vezes, a gente pode ter tornado essas perguntas que você fez numa coisa mais ampla, poética, subjetiva, memorial. Então, pra falar sobre o Baiana, vou linkar a resposta com os temas pelos quais passeamos na nossa conversa.

A ancestralidade é um poço sem fundo em que a gente mergulha. A diáspora atual e a tecnologia estão muito latentes na nossa música, a ponto de serem impulsionadoras dessas novas composições, desses novos discos, com novos métodos. Antonio Carlos e Jocafi são técnicos de linguagens modernas, então eles já se adaptaram ao celular, estão se jogando mais no inglês e no iorubá, estão mergulhando nas relações sincréticas religiosas, entendendo as transformações sociais e esse mundo unificado, pós-globalizado, esse mundo líquido. Enfim, todos esses processos que dialogam com a nossa poética, que transita por um entendimento mais filosófico e geográfico. Então, essas perguntas que versaram sobre essa relação temporal, mostrando que o passado é futuro, que o futuro fala sobre o passado, isso sempre foi Antonio Carlos e Jocafi.

Quando eu conheci Antonio Carlos e Jocafi, eles já trabalhavam as composições deles assim. O BaianaSystem tinha essa ideia de trazer uma música universal e aí a pessoa achava que estava dançando um boom bap – “Quando a brisa do vento sopra a voz de Deus” [canta o verso inicial de “Salve”] –, mas de repente aquilo era um ijexá: “Olorum, dandalunda, obatalá” [canta de novo]. Já estava ali a fórmula na fórmula do disco “O Futuro Não Demora”, que ganhou o Grammy. Já era Antonio Carlos e Jocafi permeando o trabalho com estruturas de composição [nota: a dupla de veteranos também assina a faixa citada]. É um Grammy muito de Antonio Carlos e Jocafi, de Curumin, de Edgar, de Manu Chao. São grandes artistas pregando uma linguagem universal dentro de um disco baiano.

Se você olhar, “Paraíso da Miragem”, “O Futuro Não Demora”, “Alto da Maravilha”, todos eles se tratam desse mundo que é fantasia e é realidade ao mesmo tempo, e se tratam da Bahia para o mundo, do mundo para a Bahia – do global para o local, do local para o global. É algo muito forte e a gente se enxerga nessa mímica. Isso já vinha se trabalhando em “O Futuro Não Demora” e aí sai o “Alto da Maravilha”, com várias músicas sendo colocadas, daqui pra frente, nesse espelho do olho do público. E o BaianaSystem com certeza também está funcionando da mesma forma, porque Antonio Carlos e Jocafi já estavam em mim antes de eu conhecer Antonio Carlos e Jocafi – o que dirá agora. A música do Baiana é guiada por isso, tem muitas coisas já acontecendo e a gente hoje já entende antes o que é Baiana, o que é Antonio Carlos e Jocafi e o que é “dupla de três”, pela caracterização da história.

Eu lembro muito de eu cantando, no trio, “o que é que é, aluvião” [entoa o verso inicial de “Água”] em momentos em que eu precisava [nesse último carnaval] que o público caminhasse junto, entendendo que “no ponto futuro, o doce e o sal vão se misturar”. Essa música eu não preciso nem explicar, eu canto e todo mundo pensava: “opa, peraí, a gente tem que se proteger aqui”, “parece que a rua é pequena”, “parece que tá rolando uma coisa ali”, “parece que ali fulano se queimou”, “vamos se juntar aqui”. Aí o povo se juntava, ia passando ouvindo a música, até chegar lá na frente pra explodir. Essa é que é a relação. Então estamos, sim, trabalhando, arquitetando e vivendo dentro dessa esfera coletivista do BaianaSystem e vem coisa por aí. Na verdade, já tem coisa pronta por aí. O negócio tá mó onda.

Jocafi: E eu devo dizer muito mais, ainda. Eu acho que eu tive que viver todo esse tempo pra aprender alguma coisa com vocês. Principalmente com você, Russo, que nos ensinou muito. Principalmente nesses tempos: como diz Antonio, o velho não tem futuro, tem o hoje. Mas o hoje já é importante e, se a gente tem o hoje, vamos nos mexer com o hoje. E a gente agradece a você por esse ânimo, por essa alma que você trouxe pra gente – porque a alma, ela é o ânimo. E você é a nossa alma. Você nos fez enveredar por caminhos em que nunca estivemos: aprendemos a trabalhar dessa forma e a gente se apaixona pelo cooperativismo de todo o grupo. Nós nos olhamos de uma maneira muito feliz, nós nos amamos mesmo. O que a gente vê ali é puro amor, é um abraço total em todos. Até a cozinheira cozinhava melhor, porque era pra gente.

– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE. A foto que abre o texto é de Pedro Soares / Divulgação

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